Uma das coisas que confirmei neste processo é que quem faz as leis nada percebe da realidade. É impensável quando se toma uma decisão destas ter de dar dois meses à casa. Como quem se despede não tem direito a subsídio nem a nenhuma indemnização, virá com uns troquinhos respeitantes a férias por gozar, subsídio de férias, etc. Isto se der à casa o tempo estipulado por lei (no meu caso, dois meses). Claro que lei é uma coisa, prática é outra e há sempre uma negociação para vir embora mais cedo. Um empregador inteligente sabe que o seu funcionário já está com a cabeça sintonizada noutro lado. Mas depois há os empregadores que nos querem vencer pelo cansaço.

As minhas tentativas de negociação com o meu chefe para encontrar uma data de saída fora infrutíferas. Primeiro assina-me uma carta sem data de fim porque ainda não sabe. Ok, tudo bem. Pode demorar uma semana a encontrar uma pessoa ou então uma semanita e meia, mas com a crise que por aí anda de certeza que candidatos não faltam.

Passa uma semana, duas, três, vou de férias 6 dias, volto e ainda não há data de saída. Passei de besta a bestial. Se chegou a um ponto em que não estava à altura dos meus colegas (todos vedetas e estrelas entre meia dúzia de gatos pingados), depressa apareceu outro patamar em que já sou muito boa e é difícil encontrar substituto à altura. Uma treta que me levou a ficar dois meses num trabalho que já não me satisfazia só para trazer uns trocos que me permitissem depois estar mais tempo sem encontrar fonte de rendimento.

Lição de vida: quem tenta fazer tudo na boa e não arranjar chatices, acaba sempre encavado. Para formalizar a saída tive mesmo de enviar uma carta registada com aviso de recepção porque o meu chefe não se queria "comprometer". Nem o responsável dos recursos humanos, que ia "ficar lá a trabalhar e não queria criar mau ambiente com o director". Para o meu próximo despedimento, envio logo uma cartinha aos recursos humanos e eles que avisem o director. Se não podes vencê-los junta-te a eles e sê cobardolas. E, de preferência, prepara-te psicologicamente para uma luta diária contra tudo e todos, mas principalmente contra ti.


Este deve ser, porventura, dos momentos mais difíceis. Apesar de se dizer que os amigos escolhemos e a família não (daí nem sempre termos o mesmo sangue das pessoas de quem mais gostamos), sem dúvida que é importante ter o apoio dos que nos rodeiam e sempre apoiaram.

Como é que se diz a um pai ou uma mãe que se esforçaram para nos pagar o curso e criaram expectativas connosco que vamos largar tudo e mudar de vida?! Resolvi fazê-lo de uma maneira muito simples e directa: "estou consecutivamente doente e infeliz, preciso de mudar de vida". Mas penso que é sempre melhor acrescentar: "ah! mas não te preocupes que fiz contas à vida, não vou encravar-vos com pedidos de dinheiro e vou procurar emprego logo, logo".

Depois é esperar a reacção. Seja como for, eles nada têm agora a ver com as nossas vidas e não nos devemos prender pelo que os outros pensam. Mas vocês sabem que no fundo, no fundo, isso interessa e muito.

No meu caso, teve dias. Às segundas, quartas, sextas e fins-de-semana eles aplaudiam a decisão e concordavam que eu merecia melhor e precisava de mudar de vida. Às terças e quintas, como todos temos os nossos dias menos bons, resolviam torcer o nariz e ter um ataque súbito de medo maior do que o meu.

É compreensível. Eles trabalharam 30 anos no mesmo sítio. Nós agora corremos quase tantos empregos quantos os anos de trabalho. A minha guerra com eles acabou por ser uma pequena batalha de "confiem em mim como sempre fizeram que eu sei que não vos desiludirei como, aliás, nunca o fiz".

Resta agora saber se o mercado está aberto a esta minha decisão de mudança.


"O que foste fazer?!" foi a expressão que mais ouvi nos dias que se seguiram ao anúncio da minha decisão. Como devem calcular não veio dar-me muita confiança nem entusiasmo. Até que resolvi criar defesas. Comecei a responder que a crise está na cabeça das pessoas (e, de certa forma, até está) e que de certeza que vou conseguir. Nos casos mais complicados e persistentes em desencorajarem-me cheguei mesmo a dizer que ou mudavam o discurso ou era a última vez que falavam comigo. E resultou. Uns mudaram de discurso; outros foi mesmo a última vez que me contactaram.

O importante quando se toma uma decisão destas é nunca nos arrependermos. É quase como um suicídio, julgo eu saber. Se já dei o passo irreversível, nada de arrependimentos. Não me arrependi, mas confesso que lutei minuto a minuto contra as opiniões derrotistas dos outros e contra a minha própria mente que de vez em quando duvidava da decisão. Acho que é mais o medo de não subsistir que outra coisa. Que se lixe se nunca mais voltar a fazer o que fazia (neste momento já nem gostava muito!). Que se lixe a treta do estatuto. A minha morte interna foi tão grande que até estava disposta a abdicar de anos de estudo e uma década de trabalho lutado na profissão para simplesmente servir chás. Mas em casas com estilo, música ambiente e cheirinho a scones. E chás de vários tipos para me poder dar luta misturar sabores e aconselhar clientes.

Devaneios de quem tem de se convencer que tomou a decisão certa. E eu sei que tomei. Se estou louca como os outros me vêem?! Acho que não, mas em breve saberei a resposta.



Devia ter nascido sem cérebro. Para o que fazia, ao contrário do que todos possam pensar, não era preciso e para o que agora me decidi a fazer é um verdadeiro empecilho.

"Terás feito bem?!"; "E agora, como vais sobreviver?!"; "Xii!!! Não viste as notícias?! Estamos quase em banca-rota!". Costumo dizer que não precisam de me deitar abaixo porque eu tenho a brilhante capacidade de fazer isso a mim mesma melhor do que ninguém.

Como devem calcular os dias seguintes foram de estranha e arrepiante convivência com essa realidade. Vou ficar no desemprego não sei quando, nem por quanto tempo. Muito menos em que área (uma das hipóteses era arrumar de vez a carreira e ir plantar salsa ou fazer queijos para venda - não, não eram estes os meus sonhos de vida, mas nunca se sabe).

Não basta um assustador conflito interno e temos ainda de lidar com os outros. Raios os partam! Têm a minha idade, mas a mentalidade dos meus avós e o mesmo espírito de aventura que eu tenho quando vejo um cão grande. Tremo da cabeça aos pés como uma criança que fez asneira e vai levar uma palmada. Eu sei que desta não fiz asneira. Mas irá alguém convencer os outros do contrário?!



Era segunda-feira. Talvez mau dia para pedir aumentos porque estamos mal-dispostos por voltar ao trabalho. Mas talvez bom dia para dizer que queremos ir embora. Como está tudo mal-disposto, ninguém vai pedir-nos para ficar (e é bem mais fácil quando não nos criam obstáculos).

Ao contrário do que pensei, o chefe estava bem-disposto. Entrei-lhe pelo gabinete e expliquei que tinha chegado o meu fim. Literalmente! Ou saía dali em três tempos ou passava a ficar em casa uma semana por mês com problemas de estômago e de barriga, o que em breve me levaria a ficar sem saúde (não disse isto, claro, mas pensei enquanto falava).

Não sei se os vossos pais eram do tipo "cool" e vos incentivavam na adolescência a fazer maluquices. Este chefe tornou-se mais moderno que o meu pai e disse que eu fazia muito bem em mudar de vida (só lhe faltou dizer que se estivesse no meu lugar fazia o mesmo).

Confesso que fiquei ofendida e triste. Eu sei que me queria ir embora, mas pensei que ele me fosse valorizar mais e convencer a ficar. Em vez disso, a conversa de "a vida são dois dias"; "tens de aproveitar enquanto tens essa idade"; bla bla bla... Eu não ia voltar atrás, mas ia olhar para ele com outros olhos e podia até mudar a imagem que tinha construído dele.

Além de coragem e determinação também tenho o orgulho muito apurado. Agora que decidi está decidido. E para não dar parte fraca nem que tenha de vender a casa, mas ficar aqui já não fico.


O descontentamento já se fazia sentir há algum tempo, mas achamos sempre que só damos o passo seguinte quando encontrarmos algo melhor. Em época de crise recomenda-se que se aguente o que se tem e sem grandes alaridos. Melhor não aparecia (mas também era pouco o tempo para a procura de um patamar superior) e aguentar o que tinha não é propriamente do meu feitio, sobretudo se o que se tem não é suficiente para o que precisamos no momento.

Ainda me lembro do dia em que resolvi mudar de vida. Muito Sol, muito trabalho, muitas preocupações pela frente, um chefe chato a colocar defeitos a todas as pessoas, todos os dias, mais do que uma vez ao dia e neste registo nos últimos 7 meses. A juntar a isto, um cérebro cansado, lágrimas que teimavam em mostrar-se, um ataque de estômago e os intestinos a queixarem-se. Uma semana doente em casa. Se ainda tinha dúvidas, nenhum medo de mudança podia ser superior a esta prisão de corpo e alma.

Olhei para o currículo e para a experiência acumulada, falei com a minha Alma, fiz contas, ganhei coragem e resolvi mudar de vida.