O conflito entre emoção e razão é enorme quando decidimos mudar de vida. O medo aperta-nos o estômago, a razão diz-nos que fizemos asneira, a emoção leva-nos a querer ir à descoberta do Mundo sem qualquer entrave. Quando ainda temos dois meses pela frente para dar à empresa, sem dinheiro no bolso ou direito a subsídio de desemprego, sentimos que deveríamos dar um pontapé em tudo e llogo se verá. Mas depois pensamos que já somos adultos e que não podemos encarar a vida de forma irresponsável como as crianças (será que não?!).

Confesso que me custou muito aguentar dois meses. Mais ainda porque estive sempre na expectativa de sair antes, sem qualquer penalização. Diariamente era uma luta inglória dentro de mim a decidir se metia baixa, se saía sem dinheiro ou se simplesmente aguentava dia-a-dia a engolir mais uns sapos.

Engoli uns sapinhos mais, passei-me da cabeça, cheguei a pensar que tinha feito asneira em despedir-me (pudera! deram-me dois meses para pensar!) e fui heroicamente suportar o qque já não queria durante mais 60 dias da minha vida...


Uma das coisas que confirmei neste processo é que quem faz as leis nada percebe da realidade. É impensável quando se toma uma decisão destas ter de dar dois meses à casa. Como quem se despede não tem direito a subsídio nem a nenhuma indemnização, virá com uns troquinhos respeitantes a férias por gozar, subsídio de férias, etc. Isto se der à casa o tempo estipulado por lei (no meu caso, dois meses). Claro que lei é uma coisa, prática é outra e há sempre uma negociação para vir embora mais cedo. Um empregador inteligente sabe que o seu funcionário já está com a cabeça sintonizada noutro lado. Mas depois há os empregadores que nos querem vencer pelo cansaço.

As minhas tentativas de negociação com o meu chefe para encontrar uma data de saída fora infrutíferas. Primeiro assina-me uma carta sem data de fim porque ainda não sabe. Ok, tudo bem. Pode demorar uma semana a encontrar uma pessoa ou então uma semanita e meia, mas com a crise que por aí anda de certeza que candidatos não faltam.

Passa uma semana, duas, três, vou de férias 6 dias, volto e ainda não há data de saída. Passei de besta a bestial. Se chegou a um ponto em que não estava à altura dos meus colegas (todos vedetas e estrelas entre meia dúzia de gatos pingados), depressa apareceu outro patamar em que já sou muito boa e é difícil encontrar substituto à altura. Uma treta que me levou a ficar dois meses num trabalho que já não me satisfazia só para trazer uns trocos que me permitissem depois estar mais tempo sem encontrar fonte de rendimento.

Lição de vida: quem tenta fazer tudo na boa e não arranjar chatices, acaba sempre encavado. Para formalizar a saída tive mesmo de enviar uma carta registada com aviso de recepção porque o meu chefe não se queria "comprometer". Nem o responsável dos recursos humanos, que ia "ficar lá a trabalhar e não queria criar mau ambiente com o director". Para o meu próximo despedimento, envio logo uma cartinha aos recursos humanos e eles que avisem o director. Se não podes vencê-los junta-te a eles e sê cobardolas. E, de preferência, prepara-te psicologicamente para uma luta diária contra tudo e todos, mas principalmente contra ti.


Este deve ser, porventura, dos momentos mais difíceis. Apesar de se dizer que os amigos escolhemos e a família não (daí nem sempre termos o mesmo sangue das pessoas de quem mais gostamos), sem dúvida que é importante ter o apoio dos que nos rodeiam e sempre apoiaram.

Como é que se diz a um pai ou uma mãe que se esforçaram para nos pagar o curso e criaram expectativas connosco que vamos largar tudo e mudar de vida?! Resolvi fazê-lo de uma maneira muito simples e directa: "estou consecutivamente doente e infeliz, preciso de mudar de vida". Mas penso que é sempre melhor acrescentar: "ah! mas não te preocupes que fiz contas à vida, não vou encravar-vos com pedidos de dinheiro e vou procurar emprego logo, logo".

Depois é esperar a reacção. Seja como for, eles nada têm agora a ver com as nossas vidas e não nos devemos prender pelo que os outros pensam. Mas vocês sabem que no fundo, no fundo, isso interessa e muito.

No meu caso, teve dias. Às segundas, quartas, sextas e fins-de-semana eles aplaudiam a decisão e concordavam que eu merecia melhor e precisava de mudar de vida. Às terças e quintas, como todos temos os nossos dias menos bons, resolviam torcer o nariz e ter um ataque súbito de medo maior do que o meu.

É compreensível. Eles trabalharam 30 anos no mesmo sítio. Nós agora corremos quase tantos empregos quantos os anos de trabalho. A minha guerra com eles acabou por ser uma pequena batalha de "confiem em mim como sempre fizeram que eu sei que não vos desiludirei como, aliás, nunca o fiz".

Resta agora saber se o mercado está aberto a esta minha decisão de mudança.


"O que foste fazer?!" foi a expressão que mais ouvi nos dias que se seguiram ao anúncio da minha decisão. Como devem calcular não veio dar-me muita confiança nem entusiasmo. Até que resolvi criar defesas. Comecei a responder que a crise está na cabeça das pessoas (e, de certa forma, até está) e que de certeza que vou conseguir. Nos casos mais complicados e persistentes em desencorajarem-me cheguei mesmo a dizer que ou mudavam o discurso ou era a última vez que falavam comigo. E resultou. Uns mudaram de discurso; outros foi mesmo a última vez que me contactaram.

O importante quando se toma uma decisão destas é nunca nos arrependermos. É quase como um suicídio, julgo eu saber. Se já dei o passo irreversível, nada de arrependimentos. Não me arrependi, mas confesso que lutei minuto a minuto contra as opiniões derrotistas dos outros e contra a minha própria mente que de vez em quando duvidava da decisão. Acho que é mais o medo de não subsistir que outra coisa. Que se lixe se nunca mais voltar a fazer o que fazia (neste momento já nem gostava muito!). Que se lixe a treta do estatuto. A minha morte interna foi tão grande que até estava disposta a abdicar de anos de estudo e uma década de trabalho lutado na profissão para simplesmente servir chás. Mas em casas com estilo, música ambiente e cheirinho a scones. E chás de vários tipos para me poder dar luta misturar sabores e aconselhar clientes.

Devaneios de quem tem de se convencer que tomou a decisão certa. E eu sei que tomei. Se estou louca como os outros me vêem?! Acho que não, mas em breve saberei a resposta.



Devia ter nascido sem cérebro. Para o que fazia, ao contrário do que todos possam pensar, não era preciso e para o que agora me decidi a fazer é um verdadeiro empecilho.

"Terás feito bem?!"; "E agora, como vais sobreviver?!"; "Xii!!! Não viste as notícias?! Estamos quase em banca-rota!". Costumo dizer que não precisam de me deitar abaixo porque eu tenho a brilhante capacidade de fazer isso a mim mesma melhor do que ninguém.

Como devem calcular os dias seguintes foram de estranha e arrepiante convivência com essa realidade. Vou ficar no desemprego não sei quando, nem por quanto tempo. Muito menos em que área (uma das hipóteses era arrumar de vez a carreira e ir plantar salsa ou fazer queijos para venda - não, não eram estes os meus sonhos de vida, mas nunca se sabe).

Não basta um assustador conflito interno e temos ainda de lidar com os outros. Raios os partam! Têm a minha idade, mas a mentalidade dos meus avós e o mesmo espírito de aventura que eu tenho quando vejo um cão grande. Tremo da cabeça aos pés como uma criança que fez asneira e vai levar uma palmada. Eu sei que desta não fiz asneira. Mas irá alguém convencer os outros do contrário?!